Eu gosto de estrelas. Sempre gostei. Perco-me a olhar as estrelas. Em tempos, há muito tempo, era miúdo, tive a ambição de as contar. Achava eu que o universo cabia no tamanho da tabuada. E deitei-me noites a fio de papo para o ar, com o céu estrelado como cobertura, a tentar contá-las. Perdia-me nas contas mas voltava a contar. Não desistia. Achava que podia domar o universo, pensando que o universo era aquele meu, contando-lhe as estrelas. Teimava que as estrelas, como tudo, tinham conto e dimensão. E se podia reduzir a um número. E eu queria esse número, o de quantas estrelas. Até que uma tia minha, mais sábia que uma estrela (assim a achava), me ameaçou que contar as estrelas era pecado e deus o castigava fazendo crescer verrugas no dedo apontado ao céu. E eu quis poupar o dedo, por medo às verrugas, e desisti das estrelas. Já me bastava o medo do deus castigador que a minha tia invocava. Desistir é um modo de dizer. Melhor dito: desisti de as contar. Sem deixar de as amar. Fiquei assim com mais um trauma na minha colecção - o fascínio pelas estrelas mas, por medo danado de ter verrugas nos dedos maiores que os dedos, inibido de as contar.
Mais tarde, espigado a sair de rapaz, passando do deus castigador para o deus redentor, dando harmonia ao mundo como as estrelas se arrumam no céu, aderi à turma, malta porreira e do melhor, aqueles que apanhavam no coco, erguiam no canto nobre da bandeira da luta uma cintilante estrela. Com cinco pontas e a dourado para que não se duvidasse da sua grandeza superior. Simbolizava, no código da redenção, o internacionalismo proletário. Ou seja, traduzindo para o comezinho, o sinal de que toda a malta lixada no universo estava (ou devia estar) unida para combater os lixadores. Um novo universo, portanto, e um céu reproduzido na harmonia da luta. E as cinco pontas da estrela dourada representavam os cinco continentes, todos os sítios em que os proletários sofressem e quisessem deixar de sofrer, unidos à volta de uma mesma estrela. Depois, percebi que a treta desta estrela significava, tão somente, fidelidade ao sol que nascia em Moscovo e que se afunilava numa fila necrófila para adorar uma múmia plantada na Praça Vermelha. Achei que, assim, matavam a estrela, ou pelo menos, a mumificavam como antes o fizeram ao corpo do Vladimir. E uma estrela fria serve para quê? E prometi-me: um dia que consiga contar as estrelas, sem que as verrugas me cresçam no dedo apontado ao céu, passarei ao lado da estrela das cinco pontas, a estrela múmia. Mais, prevenido, nem sequer conto estrelas que tenham pontas. Pelo sim e pelo não, só vou escolher estrelas rombas ou redondas.
Um companheiro indica-me agora que
há uma estrela catita que tem nove pontas!. E há até quem a tatue no corpo como a outra (a de cinco pontas) estava tatuada na bandeira rubra. Respeito-lhe a crença estelar. Até sei que ela, uma crença, pode dar forte e custar a passar ou ser-nos eterna no nosso estar finito. Mas, caríssimo
Marco, mantenho-me na teimosia ressentida de agora só aceitar estrelas rombas ou redondas. E que brilhem!, mais não lhes pedindo nem, muito menos, lhes consentindo.