
Perdemos um dos nossos melhores e maiores escritores de escrita curta, se medida pela obra publicada. O que, sabe-se, nada tem a ver com a capacidade e resolução da escrita. O que, no caso, não impediu que ele tenha marcado a literatura portuguesa para sempre. Falo, como já se percebeu, de
Orlando Costa.
Houve um livro deste português-goês, nascido moçambicano, que me marcou na adolescência com uma obra eterna destinada a acompanha-me o resto da vida esse eterno e perseguido romance
Podem-me chamar Eurídice. Está lá a minha geração dentro a da invenção da liberdade a iluminar os vãos de escada da resistência ao fascismo, no querer, ao mesmo tempo, rasgar ar livre e mudar os costumes de malta jovem. Em português romanesco do melhor e alguma vez parido.
O
Podem-me chamar Eurídice era livro genial mas maldito e proibido, passando de mão em mão. Porque, além de admiravelmente escrito (muito nele lembra o melhor José Cardoso Pires), era uma raridade na medida em que metia em papel uma geração a contas com o fascismo e ainda a reconstruir os costumes provincianos que nos empalavam os nervos, os quereres e os apetites. Nas várias andanças, trambolhões e reformatações da minha vida, aconteceu, sempre, perder livros. Uns caídos nas mudanças, outros esquecidos, uns tantos sequestrados pela vontade de me privarem do meu melhor, sabendo-se que isso seria ferida que não ia fechar. Em cada vez dessas guinadas, aconteceu ficar sem este livro de carinho maior. Recuperá-lo, comprando outro, foi sempre dos primeiros gestos para me reconstituir. Até hoje, não me faltou, nem me faltará, como leitura para a eternidade do meu finito. Não me faltou quando proibido pela Censura e apreendido pela PIDE, não me faltará em tempo de liberdade.
Orlando Costa deu o melhor de si, a escrever e a lutar. Com a dignidade de um monhé luso-indo-moçambicano que era pela libertação da índia portuguesa e pelo fim do colonialismo e do fascismo. Pagou um preço alto por isso. Devemos-lhe isso, o contributo que deu em luta e na prisão. Mais a sua admirável mão que deixou páginas literárias que nenhum polícia será capaz de apagar do nosso património. E que connosco ficam, indo-se ele.
De Joo a 29 de Janeiro de 2006 às 16:15
Júlia, agradeço que tenha lembrado a qualidade, que não referi, da modéstia de Orlando Costa. Esqueci-me, mas como não esquecer? Um homem grande, ou uma mulher grande, podem ser diferente disso? E, penso, não adianta insistir em politizar ainda mais a obra de Orlando Costa. Não fosse da melhor água literária e o "Podem-me Chamar Eurídice", além da dedicatória e da celebração, seria obra com a marca de um tempo. Além de romance político, o livro é um grande romance. E será isso, persistindo, como julgo, que se deve a que, além do empenho, Orlando Costa foi nosso prosador maior. Quanto ao capítulo "coerência e fidelidade a princípios e valores de que não abdicou nunca", isso é outra música, e que, até podendo ser dodecafónica, por respeito a Orlando Costa, não vou aqui dar corda.
Soube-me muito bem ler esta homenagem a um homem que foi, de facto, um Homem Grande. Na vida, na arte, na política. E quase passou despercebido... pela sua modéstia e pela sua coerência e fidelidade a princípios e valores de que não abdicou nunca.
Lembro que o livro Podem Chamar-me Eurídice foi escrito após o assassinato do escultor José Dias Coelho às mãos da Pide. E a ele dedicado.
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