
Numa noite próxima, vai para quatro dias atrás, desde o cima da minha janela, três andares acima do meu, um corpo veio em trambolhão de desespero ou de loucura, talvez numa especial mistura de muitos escuros, e depois caiu escancarado na calçada que todos os dias eu piso com os pés. O sítio está ali, frente aos meus olhos, assinalado ainda com os restos da areia com que se quis disfarçar a marca da queda. Desvio-me agora, e evito que o meu cachorro ali se alivie, profanando a mancha de areia.
Era um jovem que conheço de muito menino. Sou amigo dos pais há trinta anos. O melhor que consegui fazer, por eles, com eles, foi partilhar abraço com água salgada misturada, daquela que sai sem nada se fazer para abrir a torneira. E depois ficar, como eles, sem palavras para a falta de palavras.
Os restos que sobraram do jovem que conheço desde menino e que passou desamparado à frente da minha janela vão ser operados amanhã. Depois, tratarão dele em Alcoitão. E eu, passando da dor ao medo, caminhando pelo absurdo, ando com a mania de confirmar e reconfirmar que as janelas de casa estão sempre bem fechadas. Uma estupidez, sabendo que as janelas não sugam pessoas. É o escuro, esse que é terrível quando não se deixa fechar. Mas como dar resposta melhor à estupidez do escuro que deita corpos no espaço aos trambolhões?