Sexta-feira, 24 de Fevereiro de 2006
Que graça tem se falta a Graça? Para o Luís é que não é nenhuma desgraça, pelo contrário, tem a Graça toda para si. Há empresas e camaradas com azar e homens com sorte. Mas, é assim, é preciso que alguns sofram para que pelo menos um tenha vontade de rir.
E eu só consigo lembrar-me do saudoso Vinicius, lembrando-me sempre de ti:
Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Como esquecer a mulher mais alta que já conheci?
No eclodir de movimentos insurreccionais, a simbologia de dramatização, demonizando quem se quer combater, representa um papel chave. Um martírio, uma chacina por exemplo, no mínimo um assassinato odioso, às mãos dos que se querem sacudir do domínio, é uma alavanca poderosíssima para posterior tratamento de propaganda e como factor emocional de revolta e de mobilização. Por norma, surge o mito e o empolamento, a lenda até, para carregar as tintas.
Como cá e no antifascismo, os assassinatos de Catarina Eufémia, Dias Coelho e Alex, foram pontos fortes de denúncia da natureza criminosa do regime, em Angola foi o massacre da Baixa do Cassanje e o 14 de Fevereiro, em Moçambique o massacre dos Macondes no norte, na Guiné, o
massacre dos marítimos do cais de Pidjiguiti, ocorrido em 1959, era e é a grande referência na denúncia da ignomínia colonial e a demonstração que, perante ocupantes criminosos, nada mais restava que combatê-los também pela violência.
Com a distância no tempo, vão-se criando as condições para limpar parte da lenda e ganhando relevo as circunstâncias e a verdadeira proporção dos acontecimentos, também se aclarando aspectos sobre qual organização ou quais organizações estiveram por trás das movimentações reivindicativas reprimidas.
O historiador guineense Leopoldo Amado, na sua investigação persistente sobre a guerra colonial (guerra de libertação, para os guineenses) ocorrida naquela antiga colónia portuguesa, fornece um conjunto de dados fundamentais e inéditos sobre a génese e envolventes do massacre de Pidiguiti de que recomendo a
leitura aos amantes da aproximação à verdade histórica.
1. Ontem mesmo, aconteceu-me o que já não imaginava. Um retornado do meu bairro, daqueles que vieram de trambolhão de Moçambique por causa da colonização descolonizada, de que me sobravam no ouvido os falares altos da sua tertúlia com comparsas de azedumes e pragas que normalmente terminam na constatação partilhada de que
este país só de endireita com um ou dois salazares ou
ainda diziam mal da PIDE
, ao contrário do habitual, estava sozinho lá num canto. E eu no meu. Numa pausa em que descansei o livro que agora me ocupa, o sujeito resolve, pela primeira vez, meter-me fala:
- já reparei que o senhor gosta de ler, tome lá, leia isto que é ligeiro e passa-me uma meia dúzia de folhas dobradas que aceito por delicadeza e que desfolhadas e vistas em diagonal, eram afinal um miserável apanhado daquelas anedotas velhas e relhas com ranço racista sobre Samora e a Frelimo. Aguentei uns minutos para não destrambelhar, ai o sacana do stress, aguenta, pensando que raio de fel este em que, passadas tantas décadas, ainda bolsa e se quer propagar e aliciar. E perguntando-me se, tendo feito a guerra por eles e para eles, aos colonos depois descolonizados, ainda lhes teria dívidas por saldar. Meti travões a fundo. Limitei-me a mostrar ao sujeito que vi de que se tratava mas que não lhe queria ler a sua cartilha, devolvendo-a com a máxima e possível delicadeza
- Obrigado pela atenção, mas dispenso a leitura, não sou reaça.. E o retornado moçambicano ficou embasbacado, a olhar-me com ar de não perceber. Ou não querer. Ou nem sequer disso ser capaz.
2. É fácil denegrir. Como em tempos fizeram a Samora. Mas, de Samora, hoje não falo, porque me vem à lembrança as folhas de papel com vinagre do retornado moçambicano meu vizinho. Escolho falar de um militar de Abril (teve papel decisivo no levantamento na Região Norte e comandou as forças que ocuparam o Forte de Peniche), também muito maltratado, objecto de ódios mais que mil no turbilhão da revolução, sabe-se lá se sanados. Trata-se de um Oficial de origem transmontana, trazendo no peito a Cruz de Guerra de 3ª Classe, o grau de Cavaleiro da Ordem Militar de Aviz e a Medalha de Prata de Comportamento Exemplar. Chama-se Eurico Corvacho (foto acima). Fiquei hoje a saber que está muito doente. E li, recompondo-me por continuar a haver homens com honra, dois depoimentos sobre ele que me reconciliam com o tempo e a memória, devolvendo a honra aos honrados -
este e
mais este.
Quinta-feira, 23 de Fevereiro de 2006
Em 23 de Fevereiro de 1987, ficou-nos a faltar o Zeca, José Afonso. Como esquecer?
Lá no Xepangara
Vai nascer menino
Dentro da palhota
Tem a seu destino
Lá no Xepangara
Fica muito bem
Deitado na esteira
Ao lado da mãe
Há-de ter um nome
Lá prò fim do ano
Se morrer de fome
Tapa-se com um pano
Se tiver já corpo
Rega-se com vinho
Se não cair morto
Chama-se menino
Se tiver umbigo
Corta-se à navalha
Tira-se uma tripa
Faz-se uma mortalha
Pretinho de raça
Sempre desconfia
Se o musungo passa
Diz muito bom dia
Quando for mufana
E já pedir pão
Dá-se uma lambadacomer à mão
Mais uma patada
Vai-te embora cão
Dá-se-lhe porrada
Porque é mandrião
Lá prò fim do ano
Quando já for moço
Guarda-se o tutano
Fica pele e osso
Quando já for homem
Tira-se o retrato
Come na cozinhamainato
Se mudar de vida
Vai para o contrato
No fundo da mina
Fica mais barato
Quando já for velho
Chama-se tratante
Dá-se-lhe aguardente
Morre num instante
(
Lá no Xepangara, José Afonso, 1973)
Em
23 de Fevereiro de 1981, um tenente-coronel golpista e fascistóide, chamado Antonio Tejero Molina, com a inteligência do pistolão que tinha na mão e o sentido da decência, da democracia e da liberdade parecido ao chapéu de lata em tricórnio que lhe emoldurava o défice em neurónios, teve o sonho déspota e quarteleiro de calar a democracia em Espanha. E soltou esse grito hediondo perante os deputados eleitos -
Todo mundo al suelo!.
Agora, perante o processo de novo Estatuto para a Catalunha, Tejero continua a vociferar, publicando carta de ameaça, em que diz:
"¿Acaso nos creen aún más borregos de lo que somos? ¿Es que no van a parar de echarnos avispas para que se nos hinchen las narices y tiremos por la calle de en medio?".
O franquismo ainda circula por ali. Demais. Adormecer a memória também dá nisto.
É necessário relembrar, neste ano de 2006 em que o sistema dominante exibe todos os dias, das formas mais brutais, a sua essência opressora, exploradora, violadora dos mais elementares direitos humanos; e em que o PCP comemora 85 anos de vida e de luta contra a opressão, a exploração e pelos direitos humanos que o Partido assume, sem hesitações nem ambiguidades, que o projecto de sociedade pelo qual se bate desde que foi criado, em 1921, tem as suas raízes nesse acontecimento maior da história universal que foi a revolução de Outubro, geradora dos maiores avanços políticos, económicos, sociais, culturais, civilizacionais alguma vez verificados. (editorial do
Avante de hoje).
Pois claro, e alinhando com os
negacionistas que bolsam em cima da memória das vítimas do Holocauto, claro que o
Gulag foi também uma mera
invenção. Excepto para as vítimas, essas nunca contam nem para os carrascos nem para os mitómanos que lhes usam as bandeiras.
Vales, como se outro fosse, mais que um jogo e uma vitória. Ou trinta vitórias. Até a Taça que, no caso (desejado), corre risco de ser lambuzada com os ranhos ranhosos do Veiga e do Vieira. E os adeptos somos nós, não os que se governam, governando-nos.
Um olho vale mais que uma festa. Vê lá se melhoras para eu ficar com o gosto todo em te ganhar. Lá como cá, mas contigo em campo e dando luta.
e as
pitinhas ficam em espera, em espera.
[Uso o que costumo usar em casos destes. Ficar com a ponta da tristeza virada para dentro, lamentando menos uma acha que me alimentava a chama de leitura boa na lareira de companhia. Mas se gosto das palavras quando bem escritas como negar o seu direito à recolha do silêncio? E há coisa mais nobre e faladora que o silêncio?]
Mas repara só no que fizeste, caro
Carlos. Encerras o
Xicuembo e a terra tremeu em Maputo
Pelo visto, lá as entranhas que te espreitaram, de dentro da terra, o crescimento das solas dos pés de caminheiro de sonhos e palavras, não apreciaram teres metido trancas à porta.
E, ó
Mangusso, deixas as
pitinhas por aí esperando sem esperança de consolo?